amanhã piro-me para o algarve e sabe deus quando é que poderei cá vir marcar presença.
assim sendo, deixo-vos com uma bela história citadina, daquelas que estão sempre a acontecer mas que são raras de presenciar, ao estilo do paris je t'aime.
pois bem; ia eu muito contente pela rua, caminhando para minha casa, difamando as condições climatéricas que se têm feito sentir quando, ao começar a subir uma escadaria daquelas bem lisboetas, me deparo com um belo gatito num degrau.
vejo gatos todos os dias, e dão-me pena. terão sido abandonados? fugiram de casa? este seria decerto o filho de um desses fugidos/abandonados, porque já conhecia bem os truques da rua e ainda era jovenzinho. assumo isto porque ele, estando de costas para mim, mirava um grupo de pombas estúpidas que bicavam as folhas das árvores caídas no chão, uns sete degraus acima. não sei como é que se chama esta posição felina com a qual estamos todos familiarizados depois de vermos o rei leão, mas era essa que ele fazia. fitava-as, atento. achei amoroso. como estou habituada a lidar com cães, pensei que ele se preparava para se atirar e brincar à apanhada.
eu sorria descontraída, parada no início da escadaria (até porque é preciso ter coragem para subir aquilo sob um sol tão ardente) e, eis senão quando, o gato atira-se às pombas, e o meu ingénuo sorriso passa, lentamente, para um esgar de nojo. o gato, de facto, apanhou uma pomba. e as outras ficaram ali de roda, a olhar com aquela expressão ridícula das pombas.
o gato ficou ainda um bom bocado a imobilizar a pomba, a coitada lá ia batendo as asas. fiquei com pena. uma senhora juntou-se a mim, observando espantada.
"estas coisas não se vêem todos os dias" comentei eu, ao que ela respondeu "ai, que horror!"
uma outra senhora saía de um prédio e, mal viu o espectáculo, gritou "coitadiiiinhhhaaaaa!!" e correu para salvar a pomba, o que me pareceu idiota. pobre gato, tinha de sobreviver.
outras duas raparigas que tinham saído de outro prédio, olhando também horrorizadas, tranquilizaram-na "é tarde demais..."
o gato afastou-se com a sua merendita, lentamente.
"não sei" disse eu "parece-me que a pomba ainda bate as asas" e nisto, uma brasileira que parecia ali entendida no assunto respondeu-me "não... o danado já arrancou a cabeça dela"
mais enojada fiquei. lá ia o caçador, com a pomba decapitada, para debaixo de um carro.
fui horrorizada para casa, e fiquei a pensar nisto. irritam-me aquelas velhas que atiram miolo de pão com sei-lá-o-quê às pombas, apetece-me chegar lá e dizer-lhes "sabe que isso é crime?". as pombas são animais, e merecem tanto respeito quanto os outros, mas são também uma praga de lixo e doenças que empestam as ruas e os monumentos e que, a certa altura, aparecem atropeladas e bem esmigalhadas no meio da rua. isto não deveria ser uma coisa normal. isto parece um mundo do avesso. não deveria ser aceitável eu estar a caminhar tranquilamente e levar com um cagalhoto em cima, que me arruína o dia.
também não deveria ser aceitável haver tantos gatos na rua, e cães também, prestes a serem levados para o canil para serem abatidos.
isto é culpa nossa. é tudo culpa nossa. às vezes sinto que estamos a involuir.