14.3.10

auto-autópsia

hoje estou a brincar às profissões. faço-o muitas vezes. normalmente, fecho-me na casa-de-banho enquanto experimento maquilhagens e visuais esquisitos no cabelo. faço o favor de interpretar duas personagens - a cliente e a profissional - e elaboro diálogos interessantes entre as duas, que nem sempre acabam bem.

hoje, portanto, no intervalo de tempo que me concedo entre cada hora de estudo, sou um escritor falhado. está um belo dia lá fora, e cá estou eu de pijama, no meu escritório a fingir, à espera de inspiração divina para o meu próximo livro.
espreguicei-me e suspirei. talvez um pouco de música ajude. e quiçá pipocas.
agora tenho um balde de pipocas que consumo freneticamente para me consolar o estado inerte com que encaro o mundo. e assim é. neste momento, vivo num último andar de um prédio a cair de podre nos subúrbios de paris e alimento-me de pipocas de microondas e de enlatados. e uso uma boina daquelas cor de caca.
estas pipocas deixam-me agoniado - sim, sou um homem, até tenho aquele bigode à francês que se enrola nas pontas - tão agoniado me deixam, que mais quantidade coloco raivosamente nas mãos para levar à boca;  tão pouco tempo tenho para mastigar que volto a infligir-me mais um valente punhado de pipocas. já mal consigo respirar, mas esforço-me por me manter calmo. não sei porque faço isto. ou talvez saiba - traz-me um certo conforto de infância.
a minha mãe dava-me mais uma colherada de sopa, e mais outra, eu já não conseguia mais mas, vá-se lá saber porquê, arranjava sempre espaço para mais uma: "esta é pela mamã; esta é pelo papá; esta é pelo avô; esta é pelo senhor do talho" e assim por diante, sabem como é. não me passava pela cabeça deixar alguém de fora, tinha medo que as pessoas viessem assombrar-me mais tarde "não comeste a colher de sopa por mim!". a verdade é que nunca ninguém me assombrou, e eu acreditava que assim era porque sempre comi tudo o que me mandavam comer.

hoje estão todos mortos. todos. não tenho mais de comer uma colher por ninguém e a sensação que isso me traz é de uma liberdade imensa, aliada também de alguma solidão.

à medida que acrescentava pipocas ao amontoado que tinha na boca, repetia "esta é por mim" cada vez mais alto, pois não havia mais ninguém que eu conhecesse que merecesse a dedicatória de uma mão cheia do que quer que fosse. eu tinha de fazer aquilo por mim. os sacrifícios nem sempre são maus, e eu tinha de me mentalizar de que tinha de sofrer para ficar bem. a respiração tornava-se mais dolorosa e difícil, mas eu fui perseverante. comecei a sentir pequenos espasmos nos pulmões e não parava de gritar interiormente que estava a fazer aquilo por mim. eu precisava daquilo. eu precisava daquela demonstração de amor. se me pudesse ver ao espelho, sei que estaria provavelmente azul, com as veias da testa demasiado salientes. nesse momento estava já caído da cadeira, contorcido no chão, a ver o balde de pipocas rolar à minha frente. não sei se foram endorfinas libertas ou simplesmente a minha alma a elevar-se, mas comecei a sentir-me relaxado.
deixei-me permanecer estendido no chão num heróico acto de estoicismo quando o meu coração começou a perder oxigenação e, lentamente, o sangue cessou de circular no meu corpo.

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