23.6.09

apologia do amor

- desculpe, eu conheço-a? - a pergunta veio logo com uma certa delicadeza que quase se tornava ofensiva. mas, pobre rapaz, tenho a ideia que não se julga um livro pela capa, e esta capa era bonita.
- ainda não.
- e agora? - continuou - já a conheço?
- se me continuares a tratar por você, não me parece.
- estavas a balançar-te enquanto eu tocava djembé, e isso só me deu vontade de tocar mais. e melhor. é isso que tu queres? que façam mais por ti, e melhor? - eu não conseguia perceber porque raio é que vinham aquelas perguntas todas. seriam as minhas calças, que já tantas vezes foram alvo de chacota? ele não me conhecia de lado nenhum, não tinha nada que saber o que é que eu queria. entretanto não respondi às perguntas, a pensar na fonte de tanta curiosidade, e ele começou a fazer caretas. é óbvio que a minha expressão sisuda se transformou numa gargalhada estridente. ele ficou pasmado.
- desculpa - pedi eu - mas é que fizeste uma cara... estranha. - teria algum tique nervoso?
- eu sei - respondeu-me - foi de propósito. agora que já estás mais bem disposta, podias-me responder à pergunta.
- ah... - fiquei sem saber o que responder. é o que as pessoas deviam fazer: procurar respostas para conversar com os outros, em vez de se indagarem sobre os loucos de lisboa ou, mais concretamente, sobre um louco de olhos claros que tocava djembé no chiado. - sim, acho que qualquer pessoa gosta de ver que os outros se esforçam por si. não que eu seja muito exigente...
- então agora somos amigos... - aquilo não era bem uma pergunta, era uma afirmação. - se somos amigos, dança mais. eu fico contente se dançares com os ritmos que faço, fica uma mistura estranhamente sensual e cúmplice. não achas? ah, e podias só pensar uma vez antes de me dizeres alguma coisa. tens medo que te mate?
- vais me matar?
- não.
- então não volto a pensar duas vezes.
- o que é isso que tens na camisola? - olhei para baixo. tinha a camisola suja... de gelado?! gelado de chocolate?

senti um safanão, era ela.
- ouviste alguma coisa do que eu disse? estava a dizer que devíamos ir ao algarve... - de repente, o meu amigo de cabelos compridos e djembé estava ainda a vinte metros, a tocar e a pensar na sua vida.
- sim, devíamos. - respondi com uma lentidão que acusou a minha apatia.
- olha para ti! nem gelado sabes comer em condições! - riu-se desenfreadamente, enquanto eu esfregava a camisola suja. - vá, vamos embora.
vamos. fomos. "adeus, amigo" pensei, enquanto passei por ele. sorriu duma forma compremetedora, ia até jurar que verificou se eu tinha limpado bem a camisola. sorri de volta, e nunca mais o vi.

1 comentário:

Marta disse...

Os "amigos", como lhes quiseres chamar, têm tantas personificações ao longo do nosso caminho.. E digo mesmo caminho no sentido literário, porque o caminho que fazemos dos armazéns ao metro é relativamente curto e dá-nos que pensar para a semana inteira. A ti para o mês inteiro. Qual é o teu problema com aquela zona, deixa-te sempre estranhamente afectada, e não no mau sentido. Ainda te havias de casar com um rapaz que conhecesses no meio da rua, só "porque sim" (lembraste?)
É como se repente, nada mais importasse.