23.1.10

algodão doce

ela comia algodão doce assim que acordava, e acreditava que esse ritual lhe afastava todas as coisas más do mundo. levantava-se com o sol, preparava o algodão doce com o açúcar que tinha sobrado do dia anterior, estendia uma toalha de renda sobre o chão e ajoelhava-se na pequena almofada azul. lentamente, no silêncio da manhã fria, comia. deixava que o algodão se desfizesse na boca e se espalhasse pela sua língua. já tinha havido vezes em que quase desistiu, enojada com algo tão doce logo de manhã, mas a disciplina habituou-a.
e, assim, convencia-se sempre de que estava imune a qualquer questão problemática que pudesse surgir ao longo do dia. tão convicta estava, que todos reparavam que a sorte estava do seu lado. era feliz, sozinha na sua casa rodeada de flores e árvores. não havia preocupações. ela era boa para todos e todos eram bondosos para com ela, apesar de não terem permissão para se aproximarem mais do que o estabelecido. ninguém lhe conhecia os segredos mais profundos, nem mesmo o pequeno-almoço.
até que um dia esqueceu-se de reparar que o açúcar estava em falta, e não comprou mais. notou apenas quando acordou. voltou a deitar-se, enroscou-se nos lençóis da cama, apertou-os com força e chorou o oceano atlântico. ficou desidratada e enfraquecida, e assim deixou-se ficar.
nunca mais ninguém ouviu falar dela.

6 comentários:

snail disse...

:)
I like it...a lot!

afonso vilela disse...

"era feliz, sozinha"
não acho que as pessoas sejam felizes sozinhas :p

Anónimo disse...

com relação ao coment acima eu concordo. se trata de q? de um ser antisocial?

Anónimo disse...

isso me lembra a mama.


russo#

Anónimo disse...

Estava a pensar...Ela vivia sozinha.
Tudo o que ela queria era algodão doce.
Nada nem ninguem cativava-a mais que o algodão doce...
Não posso deixar de fazer esta pergunta: porquê que escreveste este texto? Não estou a criticar,longe disso... Mas começo a acreditar que realmente, as produções dos artistas (plásticos,escritores,pintores,etc) são sem duvida reflexo-imediato do seu interior...A teoria aplica-se contigo?
Tu gostarias de ser a Letícia?! (foi o nome que dei à tua personagem) Ou alguma vez viveste (se é que não vives) numa situação semelhante?
Será que existem Letícias com o mesmo antídoto matinal da boa graça?!

Nicandro F.

quem? disse...

talvez se aplique comigo, essa teoria. talvez não. simplesmente peguei no computador e escrevi o que me veio à cabeça e, lá está, será qualquer coisa codificada do meu interior, mas eu nem me dou ao trabalho de tentar descodificar, parece-me demasiado complexo.
eu não gostaria de ser ela. ela só depende dela. se eu só dependesse de mim, enlouqueceria. o que, no final, foi o que lhe aconteceu.
lá está. deve ser o meu medo de me aperceber que, na verdade, é só comigo que posso contar.
mas, assim sendo, estaria a descartar as pessoas que me querem bem (e a quem eu quero bem também) e que muita falta me fazem.
não sei.
parece-me que ela é o meu maior medo.