quando eu era pequenina, havia uma pergunta que me fartava de ouvir. e ainda hoje ma fazem, muitas vezes. a diferença é que agora já me sinto mais à vontade para responder e, depois de tanto tempo, já tive oportunidades de sobra para chegar a uma conclusão.
"gostas mais de cá ou de lá?"
para mim isto era uma crueldade... soava-me ao mesmo que "gostas mais da tua mãe ou do teu pai?". claro que eu nunca poderia optar por nenhum dos dois, e era mexer demais com a minha ingenuidade de criança fazerem-me uma pergunta dessas. bom, eu gostava do papá porque me ensinava a pintar e fazia-me cafuné para dormir; e gostava da mamã porque me preparava o biberão todas as noites e levava-me a passear ao fim-de-semana. é claro que a lista se estenderia, mas estas seriam as minhas razões principais. no fundo, gostava dos dois o mesmo, tinha um bocadinho de cada um em mim.
de certo modo, era por estas razões que eu nunca me decidia se gostava mais de lá ou de cá. eu tinha sempre festa lá, e só lá ia uma vez por ano. eu era a portuguesinha e, por isso, tinha todo o protagonismo. sempre fui extrovertida e dada a noitadas, e aí sentia o lá como a minha casa. mas era cá que eu passava a maior parte do tempo, e foi cá que me defini como pessoa. muitas vezes me dizem "ah, que engraçado, tens mesmo jeito de seres de lá" embora eu ache que isso não faz assim tanto sentido.
um dia, a ver o carnaval do RJ na televisão, perguntei ao meu pai se a avó também andava de rabo à mostra. até que, quando lá cheguei, deduzi que as pessoas não eram assim tão selvagens e saltitantes como eu imaginava.
fazia-me confusão, em meados da minha infância, ser de dois lugares diferentes, que era o que me acontecia. mesmo não estando sempre lá, estava sempre com o meu pai (e essa era a razão pela qual eu dizia as palavras como se todas as vogais tivessem acentos - era patético). eu achava que era óbvio as minhas amigas terem de aprender a sambar e a "requebrar" e, por causa disso, a professora da primária queixou-se à minha mãe que eu me comportava de uma forma estranha. e pintava as unhas. com seis anos.
"fala lá brasileiro", pediam-me os meus tios ou amigos dos meus pais. eu detestava que me fizessem isso, sentia-me imensamente envergonhada "o brasileiro é português" dizia eu, de nariz arrebitado. "não, fala com o sotaque de lá, vá lá!" eles insistiam até eu, por fim, amuar e virar-lhes costas.
lá faziam-me o mesmo e a minha reacção não mudava. por acaso lá tinham sorte quando esticavam as orelhinhas e me ouviam falar com o meu pai, e eu ficava possessa. mas eles diziam "oh que bonitinho, não dá pra entender nada, é tão rápido!" não me cabia na cabeça que eles não percebessem, pois se era o mesmo idioma! comecei a compreender depois de me perguntarem se cá as novelas de lá passavam com legendas.
e enfim, um bocadinho dos dois países foi-se marcando em mim ao longo dos tempos, sendo que entretanto muita coisa mudou. muita coisa mudou, e eu mudei também.
"ah, sei lá" respondia eu "gosto dos dois"
hoje sei que é aqui o meu mundo e o que há lá são memórias.
não passam de memórias.
e, quem sabe, talvez umas quantas ainda por inventar.
"gostas mais de cá ou de lá?"
para mim isto era uma crueldade... soava-me ao mesmo que "gostas mais da tua mãe ou do teu pai?". claro que eu nunca poderia optar por nenhum dos dois, e era mexer demais com a minha ingenuidade de criança fazerem-me uma pergunta dessas. bom, eu gostava do papá porque me ensinava a pintar e fazia-me cafuné para dormir; e gostava da mamã porque me preparava o biberão todas as noites e levava-me a passear ao fim-de-semana. é claro que a lista se estenderia, mas estas seriam as minhas razões principais. no fundo, gostava dos dois o mesmo, tinha um bocadinho de cada um em mim.
de certo modo, era por estas razões que eu nunca me decidia se gostava mais de lá ou de cá. eu tinha sempre festa lá, e só lá ia uma vez por ano. eu era a portuguesinha e, por isso, tinha todo o protagonismo. sempre fui extrovertida e dada a noitadas, e aí sentia o lá como a minha casa. mas era cá que eu passava a maior parte do tempo, e foi cá que me defini como pessoa. muitas vezes me dizem "ah, que engraçado, tens mesmo jeito de seres de lá" embora eu ache que isso não faz assim tanto sentido.
um dia, a ver o carnaval do RJ na televisão, perguntei ao meu pai se a avó também andava de rabo à mostra. até que, quando lá cheguei, deduzi que as pessoas não eram assim tão selvagens e saltitantes como eu imaginava.
fazia-me confusão, em meados da minha infância, ser de dois lugares diferentes, que era o que me acontecia. mesmo não estando sempre lá, estava sempre com o meu pai (e essa era a razão pela qual eu dizia as palavras como se todas as vogais tivessem acentos - era patético). eu achava que era óbvio as minhas amigas terem de aprender a sambar e a "requebrar" e, por causa disso, a professora da primária queixou-se à minha mãe que eu me comportava de uma forma estranha. e pintava as unhas. com seis anos.
"fala lá brasileiro", pediam-me os meus tios ou amigos dos meus pais. eu detestava que me fizessem isso, sentia-me imensamente envergonhada "o brasileiro é português" dizia eu, de nariz arrebitado. "não, fala com o sotaque de lá, vá lá!" eles insistiam até eu, por fim, amuar e virar-lhes costas.
lá faziam-me o mesmo e a minha reacção não mudava. por acaso lá tinham sorte quando esticavam as orelhinhas e me ouviam falar com o meu pai, e eu ficava possessa. mas eles diziam "oh que bonitinho, não dá pra entender nada, é tão rápido!" não me cabia na cabeça que eles não percebessem, pois se era o mesmo idioma! comecei a compreender depois de me perguntarem se cá as novelas de lá passavam com legendas.
e enfim, um bocadinho dos dois países foi-se marcando em mim ao longo dos tempos, sendo que entretanto muita coisa mudou. muita coisa mudou, e eu mudei também.
"ah, sei lá" respondia eu "gosto dos dois"
hoje sei que é aqui o meu mundo e o que há lá são memórias.
não passam de memórias.
e, quem sabe, talvez umas quantas ainda por inventar.